Os preços dos alimentos consumidos em casa devem voltar a subir em 2024 sob impacto do fenômeno climático El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico e afeta a distribuição de chuvas.
Esse é o cenário previsto pelo coordenador dos Índices de Preços do FGV Ibre, Andre Braz, em entrevista ao B3 Bora Investir. Essa piora deve vir depois de uma desaceleração dos preços dos alimentos em 2023.
“Pode haver um atraso de algumas safras importantes, como milho e soja, e isso vai fazer com que esses grãos subam de preço. Esse aumento vai contaminar toda a família de produtos derivados, inclusive as carnes”.
As lavouras de arroz e o feijão – alimentos básicos na mesa dos brasileiros – também podem sofrer com os impactos do El Niño. As famílias mais pobres devem ser as mais prejudicadas.
“Quanto menos a família ganha, mais ela compromete a sua renda com a compra de alimentos”, explica o especialista da Fundação Getúlio Vargas.
Pelo lado dos combustíveis, o início de 2024 traz notícias positivas. Com o barril de petróleo mais em conta e a previsão de crescimento menor da economia mundial, o preço da gasolina e do diesel tende a permanecer mais baixo. Já a energia elétrica deve pesar.
“Existem impostos ainda a serem recuperados e isso pode provocar aumentos um pouco mais fortes na energia elétrica nesse ano”.
Confira abaixo a entrevista completa com o coordenador dos Índices de Preços do FGV Ibre, Andre Braz.
Bora Investir: A inflação no ano passado fechou dentro do teto da meta perseguida pelo Banco Central. Antes de falar das perspectivas deste ano, queria ouvir o seu balanço de 2023?
Andre Braz: A inflação do ano passado foi beneficiada pelo comportamento dos alimentos. A alimentação passou três anos, de 2020 a 2022, registrando taxas muito elevadas e 2023 foi um período favorável para a agricultura. O volume de chuvas foi satisfatório e isso trouxe uma repercussão muito positiva para a safra.
Com uma oferta maior de alimentos e sem problemas de oferta em outros países produtores de grãos, isso garantiu a regularidade da oferta sem choques externos. Isso fez com que não só o preço desses grãos, mas o da carne dos animais que consomem eles – como frangos e suínos – também recuasse.
Bora Investir: Essa tendência positiva para a inflação dos alimentos, diante da safra recorde e dos outros pontos que você levantou, continua em 2024?
Andre Braz: O El Niño [fenômeno climático que afeta a distribuição das chuvas] trouxe algum pessimismo para a previsão de safra. Esse fenômeno deve atuar até o final de abril desse ano e deixar as suas marcas. Assim pode haver um atraso de algumas safras importantes, como milho e soja, e isso vai fazer com que esses grãos subam de preço. Essa alta já vem acontecendo um pouco embalada pelo risco desse fenômeno climático. Esse aumento, claro, vai contaminar toda a família de produtos derivados, inclusive as carnes.
Então, para esse ano, a gente não espera que a alimentação se comporte como uma âncora da inflação, que deve terminar o ano acima da meta. Lembrando que a meta para 2024 é 3% e ela pode chegar a um número mais próximo de 5%.
Bora Investir: A mudança na distribuição de chuvas causada pelo El Niño no Brasil pode mexer com a cotação das commodities no mercado internacional?
Andre Braz: O Brasil é um dos maiores produtores de milho e soja. Se a gente tem uma safra ruim, significa que a oferta de grãos no mercado internacional vai diminuir e isso pode alterar as cotações.
Só esse pessimismo quanto ao que o El Niño pode trazer de prejuízo para a safra de 2024 faz com que as cotações comecem a subir. Agora ainda é um efeito especulativo, mas já mostra um aumento de preço. Quanto mais tempo esses grãos se sustentarem em patamar alto, os produtos derivados – rações para trato dos animais, carne que a gente consome – vão subir de preço. Isso, claro, vai espalhar a inflação, sobretudo dentro dos alimentos.
Bora Investir: Além da questão do aumento na cotação dos grãos, o El Niño pode impactar hortifrutigranjeiro?
Andre Braz: Os frutos têm lavouras muito curtas, então podem momentaneamente subir de preço como sempre acontece no verão. Mas acaba não sendo um efeito predominante o ano inteiro, porque você tem várias colheitas e regiões produtoras. Então é um aumento que não dura muito tempo e fica muito sujeito a estação e à época do ano.
A minha preocupação maior é com as lavouras de ciclo mais longo e de alimentos de peso, como arroz e feijão, por exemplo. Então além da soja, milho e trigo, que são as grandes commodities, esses dois alimentos e a própria cana de açúcar podem também sofrer com o El Niño, aumentando de preço.
Bora Investir: Os preços dos alimentos tem um peso maior para as famílias mais pobres. Por que isso acontece? A melhora da renda em 2023 pode mudar isso?
Andre Braz: Isso acontece porque quanto menos a família ganha, mais ela compromete a renda com a compra de alimentos. Ou seja, as pessoas colocam na frente a sua subsistência básica, comer para sobreviver.
Então, quanto menor a renda, maior parcela dela é destinada à compra de alimentos para a subsistência da família. Portanto o aumento gradual da renda em termos reais, é quanto a renda avança em comparação à inflação. Isso é bom porque ajuda, ao longo dos anos, que essas famílias de baixa renda diversifiquem a sua cesta de consumo. Aos poucos, elas vão colocando outros elementos, não só melhorando a qualidade daquilo que elas comem, como também incluindo na cesta outros itens que vão além da alimentação: serviços e bens duráveis, por exemplo, se aproximando mais de uma vida normal. Mas é uma longa caminhada.
Eu acho que se a gente observar, por exemplo, o quanto os alimentos subiram de janeiro de 2020 – um pouco antes da pandemia – até novembro de 2023, isso dá um número em torno de 45% de alta só para alimentos no domicílio. Agora, se a gente acumular, a inflação dá algo em torno de 25%. Então dá para ver que a alimentação subiu 20 pontos percentuais a mais do que a inflação média. Então, se os salários são corrigidos pela inflação média, principalmente para famílias de baixa renda, ele não alcançou a carestia acumulada pelos preços dos alimentos.
São necessários muitos anos de uma política de distribuição de renda mais justa e de investimentos complementares também na educação e na formação do indivíduo, para que ele consiga – com o seu conhecimento – aumentar sua produtividade e ganhar mais.
Assim políticas em torno do salário mínimo são muito bem-vindas, pois aumentam o acesso à alimentação básica. Mas a transformação vem com um investimento mais pesado em educação para aumentar a produtividade do trabalhador e fazer com que ele ganhe mais.
Bora Investir: Os preços administrados – como gasolina e energia elétrica – ficaram pressionados em 2023. Você acredita numa desaceleração desses itens ou eles serão vilões também em 2024?
Andre Braz: A pressão em 2024 provavelmente virá do setor elétrico, com aumentos acima da inflação média. Na parte de combustíveis é incerto, porque tudo depende do preço do barril do petróleo. Como a previsão de crescimento da economia mundial esse ano é menor, se grandes economias avançam menos, demandam menos petróleo e isso pode ajudar a controlar o preço.
Em setembro do ano passado, o petróleo chegou a US$ 97 o barril e fechou o ano em torno de US$ 76 – um recuo de mais de 20%. Esse patamar abaixo de US$ 80 se sustenta até hoje. Quanto mais tempo o petróleo permanecer nesse patamar, menor o desafio da gasolina e do diesel sobre a inflação.
Só que o petróleo não é uma commodity que depende de safra, mas sim dos países produtores – e a OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] está de olho no preço do barril. Então, se a entidade percebe que o preço está indo para um patamar não atraente para os países membros, ela pode diminuir a oferta e forçar um aumento de preços, mesmo num contexto de pouco crescimento econômico. Se os países da OPEP oferecerem a quantidade justa que o mundo vai demandar, isso significa que o petróleo e os seus derivados não vão desafiar a inflação em 2024. Contudo, se eles reagirem a essa nova trajetória dos preços, a gente pode ter algum problema.
De qualquer maneira, eu acho que preços administrados não devem ter um cenário muito diferente do ano passado. Eu diria que eles vão continuar, em média, subindo bem mais do que a meta de inflação, portanto serão um desafio certo.
Bora Investir: Em relação ao setor elétrico, por que o senhor acredita que a energia deve pressionar a inflação?
Andre Braz: Existem impostos ainda a serem recuperados e isso pode provocar aumentos um pouco mais fortes na energia elétrica nesse ano. Eu não diria o uso de bandeira tarifária, porque os reservatórios estão bem cheios, mas sim questões tributárias.
Bora Investir: Em 2023 se falou muito do impacto dos núcleos de inflação na decisão de juros. O senhor poderia explicar o que é essa medida e porque o Banco Central fica de olho nela?
Andre Braz: Os núcleos de inflação são uma forma de excluir do resultado do IPCA efeitos transitórios, ou seja, aqueles aumentos que não são duradouros, que acontecem e depois somem. Isso fica muito na mão dos alimentos in natura, que sobem no verão e caem de preço no inverno. Como são muito voláteis, eles não ajudam a enxergar a verdadeira direção da inflação. Se ela está acelerando ou desacelerando. Então se excluem eles do cálculo, na expectativa de se ter uma visão mais precisa de qual é a verdadeira tendência da inflação.
Isso acontece em preços de hortaliças, legumes, frutas e até do combustível. A gasolina é volátil porque ora sobe, ora desce. A gente não sabe exatamente qual é a tendência por questões domésticas e internacionais. Ao calcular o núcleo nada é excluído, mas se diminui a importância, o peso, daquele item mais volátil. Portanto é um método estatístico para descobrir qual é a tendência da inflação.
Então se a gente exclui aquilo que é muito volátil e a inflação despenca, é porque ela está muito concentrada em itens que têm aumento ou queda de preço temporário. Mas se desconta o que é mais volátil e a inflação permanece elevada, isso significa que há um aumento generalizado de preços. Se a inflação está muito disseminada, espalhada, isso acende a luz amarela no Banco Central.
Bora Investir: A inflação dos serviços ficou muito pressionada no fim do ano passado, por conta do aumento de preço das passagens aéreas. Por que essa medida é tão importante?
Andre Braz: A chamada inflação dos serviços livres é aquela que a gente consome no dia a dia – como refeições em restaurantes, consulta médica, aluguel, condomínio, escolas, passagem aérea. Esses serviços comprometem mais de 30% do orçamento familiar, ou seja, mais de um terço do que as famílias gastam de seus salários é com serviços. Quando eles sobem de preço ou mostram uma tendência de desaceleração lenta, isso é difícil do BC alcançar com a política monetária.
Um exemplo é o aluguel, que normalmente tem um índice no contrato – IPCA ou IGP-M. Se um desses índices sobe muito, você pega a inflação do ano passado e joga para esse ano. Digamos que o IPCA termine 2023 em 4,4%. Isso significa que o seu aluguel vai subir esse valor em 2024.
A mesma coisa é a mensalidade escolar. Estamos fazendo uma pesquisa agora que mostra aumentos de até dois dígitos para o ensino fundamental e médio. Isso é ruim porque a mensalidade escolar não é volátil. A escola propõe reajuste, os pais aceitam e o preço sobe, ou seja, ela vai ficar estável o ano inteiro. Então é aumento na veia da inflação. Se a mensalidade era R$ 1.000 e passou para R$ 1.120, você teve 12% de aumento. Esse patamar de preço que será pago o ano todo. É o caso do condomínio também.
Pelo lados dos serviços voláteis temos as passagens áreas, por exemplo, que no ano passado teve uma alta recorde de 80%. É uma questão atípica. O setor aéreo sofreu muito na pandemia porque ninguém podia viajar, mas as empresas precisava manter sua estrutura operacional. Sem faturamento, essas companhias encolheram bastante. Quando houve a retomada, as empresas não estavam com a mesma capacidade operacional porque tiveram que aliviar o seu peso. E aí deu esse choque. Você tem uma demanda igualada a antes da pandemia com uma estrutura menor. Pela lei da oferta e da procura, o preço sobe muito.
Então vai levar um tempo para que esse setor se reestruture e consiga oferecer passagens a um preço mais competitivo. A partir de setembro, com as festas de final de ano, a venda de passagens aumentou muito e o preço avançou. Passando o Carnaval, entraremos num período de baixa temporada, então os preços devem devolver uma parte desse aumento todo.
Bora Investir: Para 2024, os economistas ouvidos pelo boletim Focus esperam uma inflação em 3,90%, acima da meta de 3%. Você concorda com essa expectativa?
Andre Braz: Os preços vão subir em 2024 e a inflação deve ficar um pouco acima da meta. Tudo vai depender de como será o desafio da agricultura. O país pode ter uma inflação de 4,2%, indo até 4,5%, parecida com a que tivemos em 2023.
No ano passado, a alimentação foi a âncora da inflação e preços monitorados os vilões. Até porque tivemos aquela volta da cobrança de vários impostos que tinham sido suspensos, em 2022, na corrida eleitoral. Isso encareceu no início do ano os combustíveis, especialmente a gasolina.
Esse ano parece que vai ser o contrário. Os monitorados vão continuar pressionando a inflação, mas talvez um pouco menos. Já a alimentação volta a pressionar mais, junto com os bens duráveis que desaceleram um pouco. Portanto tudo vai depender da agricultura, que é algo muito difícil da gente prever, porque vai depender do volume de chuvas e onde elas vão cair.
Bora Investir: A cotação do dólar está mais baixa, assim como as suas projeções para 2024. Por que a moeda americana impacta tanto na inflação brasileira?
Andre Braz: Existem muitos produtos cotados em dólar. Essas grandes commodities que a gente citou – milho, soja e trigo são cotadas em moeda americana. O Brasil pode ser o maior produtor de soja do mundo, só que o grão é cotado em dólar.
Então se houver uma quebra de safra ou uma oferta menor, isso vai fazer com que o preço dessa commodity suba. Se o real sofre alguma desvalorização, o preço sobe ainda mais. Portanto, o país pode pagar mais caro pelo aumento do preço do grão e pela desvalorização da nossa moeda e isso gera inflação. Por isso que a estabilidade cambial é muito importante.
Esse ano também temos um ponto de alerta para a estabilidade do dólar que é a política fiscal. O governo tem uma meta de déficit zero que é muito audaciosa. Se ele conseguir chegar perto desse compromisso, isso vai ser muito bem-visto pelo mercado, o que diminui o risco país. Isso significa um dólar e uma expectativa de inflação mais estável.